sábado, 2 de outubro de 2010

A vida a um gole

Entrou em casa como quem entra no bar. Mesmo se tentasse disfarçar o barulho dos passos, Nadir notaria a chegada do marido pelo olfato. Aquele cheiro amadeirado era inconfundível e ao mesmo tempo intragável. Não é possível, pensou com tanta força que as palavras espirraram de sua boca e esbofetearam Valter.

– Assim não há quem aguente. Ontem mesmo estava aí prometendo não beber mais. E olhe agora como está. Bê-ba-do. É sempre assim, e, o pior, na frente dos meus filhos.

– É isso mesmo. MEUS filhos.

– Sinceramente, mais para baixo eu não tenho como te empurrar. Você chegou ao fundo do poço. Devia era tomar vergonha na cara.

Valter bateu com força a porta do quarto, em vez de dar uns tabefes na esposa. Não o fez porque sua mão não a machucaria nada se comparado com o efeito daquelas palavras. Sentou na cama estreita, forrada com lençol puído. Há anos não dividia as noites, que fossem de sono, ao lado da mulher. Dormia pequeno, encolhido, naquele quarto vazio. Ao lado da cama, o criado mudo ancorava três garrafas de uísque 12 anos metade vazias. Nada mais. Tratou de consumir mais uma metade para esquentar a alma ferida pelos uivos da esposa.

Demoraria a dormir. Afinal, o coração batia forte no peito e a angústia lhe comia o estômago vazio. Faltava-lhe amor próprio, vontade de mudar. Mais fácil fechar os olhos e sentir o sabor do uísque tilintando as papilas gustativas já habituadas àquela mistura a 40% de álcool. Após uma noite de sono, lhe restaria a língua grudada no céu da boca, feito papel de bala.

Mas ainda era dia. O sol brilhava forte do lado de fora, a ponto de esbranquiçar a vista de um céu azul como há tempos não se via. Foi num dia como aquele que experimentara sua primeira dose etílica. Na adega do pai, percebeu que o barril de carvalho pingava. Deveria estar com a rosca frouxa... Não resistiu e colocou a boca debaixo da torneirinha. A gota da pinga que o pai tanto curtia lhe estremeceu a espinha.  Intenso, mas gostoso. Acabou voltando outras vezes, na esperança de que a torneirinha estivesse mal enroscada – e, muitas vezes, estava ­–, para experimentar a tontura bater e a garganta arranhar. Lembrando do passado, fechou os olhos e adormeceu.

À noite, seguiu-se o dia, como não poderia deixar de ser. Assim como não poderia deixar de ser sua rotina: bebeu a festa, bebeu o dia, bebeu a noite, bebeu a vontade de viver. Mas um dia despertou, abriu os olhos para o que não queria ver. Foi até o espelho e encontrou um homem velho.

– Eu destruí o carro do vizinho na tentativa de estacionar o meu?

– Eu cantei as amigas de meu filho aqui dentro de casa?

– Eu fiquei uma semana num motel sem ter dinheiro para pagar?

No desespero, olhou para a garrafa e se viu preso dentro dela. A imagem refletida dizia não. E foi então que ele saiu do quarto. Estava lá há quantas horas? Quantos dias? Seriam anos? Não lembrava. Ele havia bebido o tempo e tinha recordações turvas. Passou direto pela sala, sem dizer nada para mulher e filhos. Nunca mais voltou.